23/02/10

Equinócios de anjo mudo

'' Quando o vento se levanta e passa,
tua cabeça adormecida põe-se a brilhar.
Em redor dela um halo de sombra onde
a minha mão entra, vagarosamente,
pedindo-te um Sinal.
Procuro o rosto com os dedos afiados pelo desejo.
Toco a alba das pálpebras que, de súbito, se abrem para mim.
Um fio de luz coalha na saliva do lábio.
Ouvimos o mar,
como se tivéssemos encostado a cabeça ao peito um do outro.
Mas não há repouso nesta paixão.
O dia cresce, sem luz e os pássaros soltam-se do pólen dos sonhos,
embatem contra os nossos corpos.
Nada podemos fazer.
Um risco de passos ensanguentados alastra pelo chão da cidade.
A noite cerca-nos, devora-nos. Estamos definitivamente sozinhos.
Começamos, então, a imitar a vida um do outro.
E, abraçados, amamo-nos como se fosse a ultima vez...
O tempo sempre esteve aqui,
e eu passei por ele quase sempre sozinho.
No entanto, recordo:
deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói.
Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto,
fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor.
Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar.
Agora, odeio-te por não me pertenceres mais.
Odeio-te.
Abro os olhos.
Regresso ao meu corpo e odeio-te.
E, quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria
- mas ambos sabemos que o perdão não existe.
Se fugias, perseguia-te.
Mas o olhar começava a cegar.
Sentia-te, já não te via.
E o pior é que o tacto também esqueceu, rapidamente,
a sensualidade da pele e o calor do sexo.
O rosto aprendido de cor.
Hoje, tudo se sobrepõe.
Nomes, rostos, gestos, corpos, lugares...
um montão de cinzas que me deixaste como herança.
Não devo perder tempo com o ciúme.
A paixão desgastou-me.
E nunca houve mais nada na minha vida - paixão ou ódio.
Só isto: se me aparecesses agora, tenho a certeza, matava-te."
Al Berto

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